A Bahia é o estado com o maior número de apreensões de anfetamina em todo o Brasil em 2020, segundo levantamento da Polícia Rodoviária Federal (PRF) obtido pelo Correio. Das mais de 120 mil unidades da droga, 68 mil foram encontradas em território baiano – mais da metade do que foi apreendido no país. Em 2019, o número de apreensões na Bahia corresponderam a quase 25% do total.
por caminhoneiros nas estradas brasileiras para driblar o sono e permitir que eles dirijam por mais horas ininterruptas. Contudo, o uso e circulação da medicação são proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e podem causar sérias complicações na saúde dos motoristas, além de provocar acidentes nas rodovias.
O caminhoneiro Luiz Alves** conta que precisou tomar um desses estimulantes para não dormir e poder cumprir as apertadas datas de entrega da empresa de transporte para qual trabalhava. Ele diz ter utilizado muito o Desobesi, que foi tirado de circulação pela Anvisa em 2011, usado em tratamento de pessoas com obesidade para inibir a fome, mas também tinha efeito de tirar o sono.
“A carga horária é muito grande, as folgas são pouquíssimas, qual é o ser humano que vai aguentar sem fazer o uso de estimulante? O cara que faz rota de São Paulo para o Nordeste tem mais de 4 mil quilômetros de viagem para fazer em três, quatro dias, com carga agendada e horários apertados. O empregado se sente obrigado a fazer aquele horário, se não vai pôr em risco o emprego e tem contas para pagar e família para sustentar. E se ele não fizer, outra pessoa vai fazer”, narra Alves**.
O caminhoneiro costumava passar de 24 a 36 horas dirigindo sem dormir, só fazendo pequenas pausas de 30 minutos para abastecer e comer. A rotina se repetia durante a semana e a média diária de sono dele, por dia, não passava de 3 horas, enquanto que o recomendado pelas autoridades de saúde é de cerca de 8 horas. Nesses momentos, ele fazia o uso de estimulante, mas não mais que dois comprimidos por noite. “Sempre procurei tomar o mínimo possível para o organismo não se habituar e pedir mais”, completa.
Luiz** já não faz uso da medicação, que tomou por dois anos e meio. Ele parou por não ter mais necessidade, já que agora é autônomo e os horários estão mais flexíveis. E, também, pelo uso ter causado problemas de pressão alta. Um dos efeitos colaterais que sentia após a ingestão da substância era a “tremedeira”. “Às vezes dava uma tremura no corpo, mas nada que tirava a atenção ou a mobilidade, nada que prejudicasse”, avalia.
Efeitos colaterais
Mas, essas não são as únicas consequências para quem faz uso de anfetamina. O psiquiatra Antônio Freire, professor da Universidade Federal da Bahia e da Faculdade Bahiana de Medicina, explica que alguns psicoestimulantes podem causar aceleração dos batimentos cardíacos, picos hipertensivos, tonturas, dores no peito, mal estar, dores de cabeça e irritabilidade: “Elas estimulam o sistema nervoso central e fazem com que a pessoa fique alerta, acordada. Mas, outros componentes não vão estar funcionando de modo adequado. Ela pode ter prejuízo na capacidade de atenção, na capacidade cognitiva, na memória imediata”.
O professor ainda revela que, em um ato complexo como o de dirigir, os motoristas precisam da atenção a todo momento e que esses comprimidos têm efeito de inibir o sono a curto prazo, fazendo com que os motoristas tomem muitas doses em curto período de tempo, podendo levar a acidentes e dependência química. “Existem psicoestimulantes que têm um tempo de ação no indivíduo de duas horas. Ele vai garantir que o caminhoneiro não tenha sono. Mas, ele pode ter o efeito rebote, rapidamente entrar no quadro de sonolência e bater o carro”, completa Freire.
O médico ressalta que não existe orientação médica para usar a anfetamina a fim de ampliar o horário de trabalho. Algumas delas, liberadas pela Anvisa, podem ser usadas sob prescrição médica, mediante realização de exames, para tratamentos de pessoas com transtorno de déficit de atenção, mas em doses pequenas e não com o objetivo de deixar o paciente sem dormir.
Apreensões da PRF
Dos mais 68 mil comprimidos apreendidos pela PRF este ano, 66 mil foram em uma só operação, em julho deste ano. A carga, apreendida no município de Barreiras, na BR-242, vinha de Goiás e chegaria ao Ceará. Segundo o inspetor Cleiton Barreiras, apreensões desse porte não são comuns. “É bem raro pegar essa quantidade. Normalmente, você acha com o consumidor final, que é o caminhoneiro, ou em postos de combustíveis e farmácias. Não é tão fácil porque é uma mercadoria pequena e não tem um cheiro próprio que facilita ser encontrado por um cachorro, por exemplo”, comenta o inspetor.
Cleiton Barreiras revela que a droga não é produzida no Brasil, é feita no Paraguai e contrabandeada por quadrilhas que fazem a droga circular nas regiões Oeste e Nordeste. A identificação do veículo suspeito é feita pelo cronotacógrafo, que mede quanto tempo o caminhão está dirigindo ininterruptamente. “A gente mede quanto tempo ele está dirigindo, às vezes 24, 36 horas, e faz a varredura no veículo porque ele pode ter utilizado cocaína, crack. O rebite é só a porta de entrada. Infelizmente, tem sido uma das grandes causas de acidentes”, afirma o inspetor. O equipamento também registra a distância percorrida e a velocidade do veículo no caso de algum acidente na rodovia, podendo ser utilizado para perícia técnica.
Lei do descanso
Desde 2015, existe a Lei do Descanso, que obriga os motoristas de caminhão, ônibus e vans a descansarem 11 horas a cada 24 horas dirigidas. Dessas 11 horas, 8 horas devem ser ininterruptas, equivalentes às horas de sono. Além disso, a legislação obriga que os motoristas façam 1 hora de descanso a cada 5 horas para fazer as refeições. A multa para quem é pego dirigindo mais que o permitido é de R$ 130,99 e quatro pontos na carteira, além de ter o veículo retido na delegacia por 11 horas.
As denúncias à PRF sobre a utilização de qualquer droga podem ser feitas pela central 191. É recomendado dar o máximo de detalhes possível de onde e com quem a substância estaria para ajudar as autoridades a localizarem os meliantes. As denúncias podem ser anônimas. Em 2020, foram registrados 1.304 acidentes com envolvimento de veículos de carga, contra 1.168 em 2019. Do total de acidentes contabilizados este ano, 180 foram do tipo tombamento.
Por meio de nota, a PRF informou que intensificou as fiscalizações de veículos de carga na Bahia. “Em virtude do tamanho dos veículos e do peso relacionado às cargas transportadas por eles, os acidentes que envolvem veículos de carga geralmente têm maiores proporções e geram maior gravidade das lesões ou a morte dos envolvidos. A PRF na Bahia realiza com frequência comandos específicos que tem como objetivo coibir condutas irregulares na execução desse tipo de transporte e possíveis ilícitos criminais, contribuindo assim para a fluidez do trânsito, conservação do pavimento asfáltico da rodovia e segurança dos usuários nas rodovias federais”, informa a nota.
O presidente da Associação de Proteção das Empresas de Transporte de Carga (Assetrac), Joaquim Rubio, afirma não ter conhecimento de nenhum motorista que fez uso de substâncias ilegais. “Nunca tivemos uma ocorrência dessa, felizmente. Já consta no nosso regulamento interno que se a pessoa estiver dopada com alguma droga, não haverá cobertura”, relata Rubio. A Assetrac existe há 10 anos e tem hoje mais de 600 associados.
A orientação do Sindicato dos Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens da Bahia (Sindicam-BA) também é de que os caminhoneiros não façam uso da anfetamina. “O caminhoneiro é apenas o transportador, não tem envolvimento com que vai no caminhão, estão tentando ganhar a vida. O sindicato lamenta pelos caminhoneiros que se drogam e orienta a não fazerem isso, mas a gente não tem poder de polícia e não tem serviço social, resta à fiscalização federal”, comenta um funcionário do Sindicam-BA que não quis se identificar.
Procuradas, a Associação Brasileira dos Caminhoneiros e Associação Nacional dos Caminhoneiros (Anacam) não responderam às reportagem até o fechamento desta matéria.
Apreensões anfetamina feitas pela PRF em 2019
Basil – 20.367
Bahia – 4.960
Apreensões anfetamina feitas pela PRF em 2020
Basil – 120.419
Bahia – 68.547
Leia a matéria original em Correio