Cátia (nome fictício) entrou na sala da audiência de custódia extremamente abatida. Ela usava uma espécie de fralda e tinha hematomas principalmente nos braços. Negra, obesa e dependente química, havia sido presa por ter furtado um bolinho de bacalhau e algum outro tipo de congelado em um Carrefour da zona oeste do Rio de Janeiro.
Era uma sala pequena no Tribunal de Justiça, no centro da cidade, entre o final de 2017 e o início de 2018. Ocupavam o palanque mais alto uma juíza, um promotor e o secretário que tomava nota ao lado. Mais abaixo, o defensor público e a presa em flagrante, por volta de seus 35 a 40 anos. Quase todos homens.
A juíza perguntou algumas vezes por que ela tinha os machucados, mas ela permanecia em silêncio. Só contou o que havia acontecido depois que a magistrada se aproximou e, a pedido do defensor, permitiu que sua companheira entrasse na sala, em um procedimento que não é usual. “Fala para eles o que aconteceu”, pediu a companheira.
Um tipo de audiência que normalmente dura cerca de 10 minutos dessa vez durou 40. Não era a primeira vez que Cátia havia furtado, e o promotor da custódia, Bráulio Gregório Silva, um dos poucos negros do Ministério Público, já a conhecia. Mas daquela vez o que ela relatou foi diferente.
A mulher disse que os seguranças a levaram para uma salinha da loja, onde teria sido espancada com um pedaço de pau. A outra parte só contou mais tarde, à psicóloga, depois que a juíza determinou sua soltura e que passou pelo atendimento psicossocial. Ela disse que eles a teriam estuprado, também com um pedaço de pau.
Os relatos acima são da juíza Cristiana Cordeiro, que atuou na central de custódia do Rio entre o segundo semestre de 2017 e maio de 2018, e do defensor público Eduardo Newton, que trabalhou por três anos nesse tipo de audiência, até julho deste ano. Ambos estavam na sala e descreveram os mesmos acontecimentos.
Cordeiro e Newton não se lembram do nome verdadeiro da mulher, da data exata da audiência nem do endereço preciso do Carrefour em que o crime teria acontecido, mas os dois dizem que ela foi encaminhada a um hospital pelo delegado antes de o flagrante ser registrado, o que não é comum.
Quem acompanhou o caso depois foi o Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública, que confirmou que atuou no caso, mas afirmou que não chegou a processar o Carrefour “por perda de contato com a assistida na época”. A reportagem apurou que Cátia chegou a ir no Nudem, mas depois não voltou mais.
“Normalmente o que se faz é lavrar o flagrante, a parte burocrática, e depois mandar o preso para a custódia e o IML (Instituto Médico Legal) para fazer exame de corpo de delito. Foi uma das primeiras vezes que vi o delegado mandar o preso primeiro para o hospital. Quando tive contato com ela que entendi”, diz Newton.
Segundo ele, que costumava fazer cerca de 16 audiências por dia, foi uma das piores sessões de que já participou na vida. “Além da espécie de fralda, ela tinha marcas no corpo de pancadas que, para ficar marcado no corpo dela que era negra, foram muito fortes. Era uma situação de agressão e humilhação, de ela não conseguir falar para a gente.”
Além disso, diz o defensor, Cátia trazia exames “assustadores”: “Os exames de imagem apontavam que tinha um machucado bem feio no ânus, não lembro o termo técnico. Se não me engano, ela foi de cadeira de rodas para a audiência”.
A juíza lembra que o registro de ocorrência informava apenas que Cátia havia sido flagrada furtando alimentos e que foi então detida no estacionamento e conduzida à delegacia. Também conta que ela não era moradora de rua e a família tinha apresentado uma série de documentos de que estava sendo tratada da dependência química.
“Teve uma coisa que me marcou muito. Ela costumava sumir nas cracolândias da cidade, e essa companheira sempre ia atrás dela achá-la. Era muito amor que essa mulher tinha por ela”, afirma o defensor Newton.
OUTRO LADO
Procurado, o Carrefour disse não ter encontrado informações sobre o caso. Em nota oficial, declarou que repudia todo e qualquer ato de violência, intolerância e descriminação: “Nós temos valores muito fortes que vão contra este tipo de atitude em todos os países que atuamos, mas sabemos que, infelizmente, algumas pessoas acabam por não cumprir essas regras.”
A nota continua dizendo que “é nosso papel reforçar, cada vez mais, nossos treinamentos e sensibilizações para que episódios como estes não voltem a se repetir. Temos uma missão muito forte pela frente de não só estabelecer regras e reforçar nossos valores, mas também de sermos uma empresa que luta, cada vez mais, contra o racismo.”
A rede de supermercados foi alvo de protestos pelo país depois que na quinta (19), na véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi morto por dois seguranças em uma unidade em Porto Alegre.
Neste sábado (21), a empresa foi desligada da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, que reúne 73 organizações. “A grande questão da exclusão do Carrefour tem a ver com fato de serem reincidentes”, disse Raphael Vicente, coordenador da iniciativa.
O Grupo Carrefour havia anunciado, em um comunicado, que romperia o contrato com a empresa responsável pelos seguranças, além de demitir o funcionário responsável pela loja na hora do ocorrido.
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