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Mil dias depois, não se sabe quem mandou matar Marielle e por quê

Há mil dias a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi assassinada em uma emboscada no centro do Rio de Janeiro com o motorista Anderson Gomes. Há mil dias pessoas perguntam quem mandou matá-la.

A resposta, contudo, pode ainda demorar a chegar: uma das frentes de investigação está travada diante de batalha judicial entre o Google e o Ministério Público do Rio.

A promotoria pediu que a empresa compartilhasse os dados de geolocalização de todos os usuários que, em um intervalo restrito, passaram pelo local onde o carro utilizado pelos supostos assassinos, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, foi visto pela última vez, em dezembro de 2018.

Assim, o Ministério Público teria acesso aos IPs (número de identificação de um celular, por exemplo) de todos os dispositivos que estiveram no pedágio da via Transolímpica, zona oeste, naquele período.

A acusação também quer identificar os dispositivos que buscaram determinadas palavras-chave associadas a Marielle nos cinco dias anteriores ao assassinato. O objetivo é achar pistas dos mandantes do crime, ainda incógnitos.

O Google se negou a fornecer as informações e foi derrotado em recursos apresentados no Tribunal de Justiça do Rio e no STJ (Superior Tribunal de Justiça), em agosto. O caso será julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Amparada por especialistas em direito digital e governança na internet, a empresa alega que o compartilhamento de grandes volumes de dados representa grave ameaça à privacidade dos usuários.

O Google argumenta que o ordenamento jurídico brasileiro não admite quebras de sigilo e interceptações genéricas, sem a individualização das pessoas afetadas. Também diz que já colaborou com dados de mais de 400 pessoas e informações de quebras de conteúdo de mais de 30.

O Ministério Público defende que o compartilhamento das informações requisitadas não traz prejuízo à privacidade, alegando que pediu apenas dados anonimizados, e não de conteúdo.

A promotora Simone Sibilio, à frente do caso Marielle, disse à Folha que os pedidos à empresa se referem a localidades e períodos restritos, e que “há perfeita razoabilidade e proporcionalidade diante da causa que se quer investigar”.

“Quando peço o IP, vou na operadora e pergunto: qual o telefone vinculado a esse IP? A partir daí podemos descobrir o nome da pessoa. Hoje, dados cadastrais podemos obter independente de autorização judicial. Conteúdo é pedir o que a pessoa pesquisou, quais páginas acessou”, diz.

Para o advogado Carlos Affonso de Souza, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e presidente do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade), o compartilhamento de grandes volumes de informações gera receio a respeito do monitoramento excessivo dos indivíduos.

Isso porque as autoridades precisam se comprometer a descartar os dados irrelevantes para a investigação, e não utilizá-los para outros fins. Ele lembra ainda de uma série de vazamentos de dados guardados pelo poder público recentemente, como o ataque hacker do qual o próprio STJ foi alvo no mês passado.

“Não se trata de não querer compartilhar com as autoridades brasileiras, se trata de uma situação em que a empresa vai se ver obrigada a cada vez mais entregar dados de seus usuários”, diz.

O especialista afirma que a decisão do STJ que negou o recurso do Google gera preocupação pela possibilidade de chancelar futuras ordens judiciais mais abrangentes sobre o acesso a dados pessoais.

Souza diz, ainda, que o caso Marielle intensifica o debate sobre equilíbrio entre a necessidade de concluir uma investigação e a proteção da privacidade de indivíduos sem relação com o crime. “Os mil dias do assassinato chegam em um momento em que a Lei Geral de Proteção de Dados está em vigor […] Esperamos que a polícia trate dados pessoais com a diligência que é devida, ou que se chegue a alguma forma que não implique nesse compartilhamento com autoridades.”

O assassinato de Marielle e Anderson é considerado fora da curva em termos de complexidade. Segundo o Ministério Público, o fato de os supostos autores serem ex-agentes do Estado fez com que tomassem uma série de cuidados para não serem descobertos.

“Tem toda uma série de dificuldades características desse tipo de criminoso. O assassinato foi praticado com um grau de profissionalismo como poucos que a gente viu”, diz a promotora Sibilio.

Ronnie Lessa é policial militar da reserva, e Élcio de Queiroz foi expulso da PM por suspeitas de ligação com contraventores. Eles foram presos em 12 de março de 2019, a dois dias de o crime completar um ano, e hoje aguardam o julgamento do tribunal do júri, que depende de um recurso no TJ e não tem data para ocorrer.

As investigações apontaram que os acusados ficaram quatro horas dentro de um carro clonado, sem desembarcar durante todo o trajeto, enquanto esperavam Marielle sair de um evento na Lapa. Usaram celulares que não estavam registrados em seus nomes, puseram-nos em modo avião e em nenhum momento falaram ao telefone.

Nos mil dias que se passaram desde o crime, o caso esteve nas mãos de três delegados. Giniton Lages deixou a apuração logo após a prisão dos supostos executores, e Daniel Rosa foi substituído por Moysés Santana em setembro, depois que o governador em exercício Cláudio Castro (PSC) assumiu o lugar de Wilson Witzel (PSC).

No último ano, o caso foi alvo ainda de uma outra discussão judicial: se a investigação deixaria a alçada da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio e ficaria sob a responsabilidade da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República —contra a vontade da família de Marielle.

À Folha a viúva da parlamentar, Mônica Benício, eleita vereadora em novembro, afirmou que não havia argumento técnico que justificasse a mudança. “Por mais que possa parecer muito tempo, e é, não existe uma demora indevida. Infelizmente foi um crime muito sofisticado, muitíssimo bem executado.”

Em maio, o STJ decidiu por unanimidade que o processo seguiria na Justiça estadual. A relatora do caso, a ministra Laurita Vaz não viu “inércia ou inação” das autoridades do Rio de Janeiro.

Enquanto não conseguem os dados do Google, os investigadores se concentram nas informações dos celulares e do iPad de Ronnie Lessa, que levaram mais de um ano para serem desbloqueados por uma empresa especializada.

Outra pista que pode ajudar é o depoimento de um morador da Muzema, comunidade dominada por milicianos. Eduardo Almeida Nunes de Siqueira, cujo advogado é o mesmo de Lessa, disse ter clonado um Cobalt parecido com o usado no crime em janeiro ou fevereiro de 2018, pouco antes dos assassinatos.

Leia a matéria original em BNews

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