A piada de que a vacina contra a Covid-19 transformaria os imunizados e imunizadas em jacaré tomou as redes sociais nos últimos meses, com hashtags, filtros e legendas divertidas, transformando-se meme, estampa de camiseta e até fantasia na fila dos postos de saúde. Mas o que parece absurdo na cultura de pessoas não indígenas tornou-se um dos principais motivos pelos quais indígenas de várias etnias têm recusado a vacina.
Na cosmologia de alguns povos, a transformação do homem em alguns animais é possível e, muitas vezes, temida. A relação homem-animal tem contornos específicos em cada uma das culturas da floresta, cuja diversidade de modos de vida e organização social é tão encantadora quanto complexa.
Os dados estão defasados, mas o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicavam que viviam no país cerca de 896 mil pessoas, de 305 etnias, que se declaravam indígenas, sendo que mais da metade delas vivia em territórios oficialmente reconhecidos.
Apesar de terem sido incluídos no grupo prioritário de imunização contra a Covid-19 e de, segundo o Ministério da Saúde, 72% dos indígenas já estarem vacinados com as duas doses, ainda há resistência entre algumas populações, mesmo entre aquelas que já receberam, nos últimos anos, proteção contra doenças como o sarampo.
Muitas aldeias desconfiam do fato de terem sido priorizadas, uma vez que são escanteadas em todas as outras políticas públicas. Ou seja: desconfiam de que a vacina seja um plano para dizimá-las, para que suas terras sejam enfim tomadas por garimpeiros e pelo agronegócio.
Além disso, suspeitam da “rapidez” com que o imunizante foi desenvolvido, o que faz com se sintam cobaias de uma experiência misteriosa. A combinação desse temor e do medo da mutação em um animal ainda recebe um ingrediente religioso: a influência evangélica entre esses povos.
Pastores que trabalham próximos a eles vêm reforçando narrativas antivacina com mensagens falsas de que o imunizante seria “coisa do demônio” ou traria um chip maléfico em sua composição -nada muito diferente do que a infodemia que tomou conta do cotidiano das pessoas não indígenas no último ano.
A diferença é que a educação dos povos originários do Brasil nunca foi prioridade como política pública, com grandes dificuldades no que tange à infraestrutura escolar, formação docente bilíngue e produção de materiais pedagógicos que respeitem cada tradição. Isso inclui a difusão e o acesso a tecnologias nas aldeias, o que tem ocorrido de forma muitas vezes confusa e sem educação tecnológica, digital e midiática que também considere as especificidades de cada povo.
Portanto, eles estão menos preparados para enfrentar a onda de desinformação sobre qualquer que seja o tema, o que se torna bastante perigoso quando se vivencia uma crise de saúde pública tal qual a que enfrentamos. Mesmo que as equipes multidisciplinares do SUS e as diversas entidades do terceiro setor que atuam na área se esforcem para evitar a propagação de mentiras sobre a Covid-19, a ausência de uma comunicação coordenada, clara e sem viés, é bastante sentida.
É preciso que iniciativas de educação midiática olhem para essas populações com respeito, sem estereótipos e preconceitos. O primeiro passo é justamente a desconstrução de uma ideia única de índígena, reduzida a uma imagem colonial de “selvagem” que ainda persiste. Jovens indígenas de diferentes etnias são influenciadores digitais e usam as redes sociais para divulgar a cultura de seus povos, como Katú Mirim, Cristian Wari’u, We’e’ena Tikuna e Alice Pataxó, entre tantos outros.
Os jovens, inclusive, são uma ponte para o diálogo com os mais velhos, já que muitos frequentam escolas e universidades em centros urbanos. Recentemente, o Instituto Palavra Aberta realizou duas oficinas online com lideranças e jovens Kayapó do Pará, de aldeias ligadas ao Instituto Kabu. Com tradução simultânea, foi possível apresentar e discutir memes, “fake news” e outros conteúdos que eles recebem diariamente pelo WhatsApp, refletindo sobre possibilidades e riscos.
Mesmo com a distância física e a dificuldade de estabelecer uma relação de confiança, houve uma troca bastante proveitosa, especialmente durante a palestra com os mais novos, que afirmam que muitos celulares são compartilhados entre os membros de uma mesma família, o que faz com que todos recebam as mesmas mensagens. Vídeos falsos associando a morte de indígenas à Coronavac estão entre os conteúdos recebidos que mais amedrontaram os Kayapó.
A disseminação de conteúdos falsos entre os povos da floresta nada mais é do que mais uma forma de subjugá-los e violentá-los. A preservação dessas culturas e tradições também passa por protegê-las de conteúdos manipuladores e falsos, o que só pode ser realizado por projetos de educação midiática verdadeiramente inclusivos. Fonte: BN